A morte é a única certeza sombria que ronda nossas vidas. Iremos morrer, mas não sabemos quando. É algo inevitável que não podemos impedir.
A morte nunca é esperada. Mesmo para pessoas que está em estado terminal por uma doença ou um grave acidente. Ela simplesmente permanece, dia após dia, vivendo cada minuto, fingindo que a morte não existe.
Sempre vai faltar tempo para realizar aquele plano possível esquecido na empoeirada garagem da nossa mente. Diante da morte, a vontade de viver para fazer aquilo que não tivemos tempo, se torna nosso principal objetivo.
A tristeza vem mergulhando as viúvas em um abismo de dor, luto e sofrimento pela perda enquanto que as crianças vêem toda a cena, mas sem compreender, se entediam com a situação.
Meu pai recebeu a surpresa desta terrível visita da morte quando tinha 27 anos. Morreu em uma idade onde muitas lendas da música morreram devido às suas vidas pervertidas cheias de luxúria.
Mas meu pai não era deste universo, era uma pessoa comum. O câncer não escolhe idade, cor ou sexo e ele foi o sorteado da vez com mortal doença. Ele se foi quando eu tinha apenas 8 anos de idade. Esta dor me acompanha desde então.
Esta saudade é uma constante e se tivesse acontecido antes de 8 anos, talvez eu me lembrasse e não teria que carregar essa dor da perda. Mas pelo menos posso dizer que tive um pai por um pouco de tempo.
Ao mesmo tempo que era divertido, ele se tornava rígido. Mas, tinha o cuidado de me aplicar um corretivo com um leve piadinha para não me magoar.
Nunca faltava o amoroso beijinho e boa noite antes de dormir. E este hábito se tornou meu costume também para meus filhos.
Influenciou insistentemente meu gosto por esporte, me obrigando a gostar do seu time favorito me explicando tudo detalhadamente sobre os jogos. Posso dizer que na explicação ele se saiu melhor que minha mãe!
Ele nunca me revelou que iria partir, nem mesmo quando estava no hospital, cheio daqueles tubos esquisitos, ligados à aparelhos luminosos.
Durante as visitas, ele fazia planos comigo de que ano que vem iríamos viajar, pescar, ir à lugares desconhecidos. Aos seus olhos, ano que vem, que para ele nunca chegaria, seria uma experiência incrível. Eu viajava também, sorria e me empolgava em seus pensamentos.
A maneira dele tentar deter o inevitável era pensar em um futuro que ficaria somente neste pensamento presente, como se fosse algo que desse sorte e alguma esperança. Ele conseguia me fazer rir diante do caos que estava acontecendo. E fez isso até o dia da sua morte.
Ele não me viu chorar quando ele se foi. Minha mãe estampava a preocupação e urgência de chegar logo ao hospital, quando foi me apanhar na escola.
O médico com seu método psicológico, deu a notícia para minha mãe de modo cuidadoso e sensível de que meu pai não tinha chances. Naquele momento o único fio de esperança que minha mãe tinha, desabou junto com suas lágrimas.
Naquele momento meu mundo de sonhos junto com meu pai, caiu. Como ele pode fazer isso comigo? Ele me prometeu que logo sairia para colocarmos em ação nossos planos. O ódio tomou conta do meu coração por alguns minutos, ele mentiu para mim! Por causa disso, extravasei minha raiva aos berros no hospital.
E de repente, me dei conta de que papai não estaria ali para me acalmar e o choro veio como uma torrente de dor e sentimento de perda.
Meu pai esteve presente naquele exato momento! Uma das enfermeiras do hospital veio trazendo uma caixa de sapatos cheinha de envelopes com cartas e me entregou.
Eu peguei a caixa entre meus soluços e lágrimas sem entender nada. Ela disse que meu pai pediu para ela me entregar pessoalmente. Cada envelope tinha sua função específica e uma das cartas, a única fora da caixa, era para mim.
Ela me disse para eu ser um menino forte, me abraçou e saiu. O título da carta era PARA QUANDO EU ME FOR.
Meu amado filho,
Se você está lendo esta carta, é porque eu já me fui. Me perdoe mais eu sabia que iria morrer. Não te contei para evitar o sofrimento de te ver chorar. Neste momento de morte, o ser humano tem um pouco de egoísmo, querendo que este momento seja somente seu para sofrer.
Como não tive tempo de ensinar certas coisas da vida, lhe deixei as instruções através destas inúmeras cartas. Mas você deve ser obediente e abrir as cartas no momento exato para qual ela foi escrita. Este vai ser o nosso segredo, tá ok?!
Eu te amo e agora você é o rei da casa. Tome conta da sua mãe para mim.
Um beijo grande, pai.
PS: não deixei carta para sua mamãe, ela já ficou com o nosso carro.
A carta tinha o velho e bom garrancho do meu pai, afinal de contas, o computador para digitar e imprimir ainda não era tão popular assim. Quando terminei de ler, mais uma enxurrada de intensas lágrimas.
E à seguir, um riso surgiu involuntariamente em meu rosto que me acalmou pois lembrei do seu jeito de me repreender depois de ter aprontado uma das minhas artes.
Esta caixinha de sapatos se tornou a coisa mais valiosa de todos os meus dias. Tudo era meu. Eu havia decorado em minha mente, como quem espera a prova da faculdade, todos os momentos da vida em que eu deveria abrir os misteriosos envelopes.
Mas, estes tão esperados momentos demoraram para acontecer e acabei me esquecendo das cartas. Passou-se sete anos e uma mudança depois e me dei conta da caixa, não sabia onde ela estava!
Eu não sentia falta dela. Igual a dinheiro que achamos um tempo depois em algum bolso da roupa. E então a primeira experiência descrita nas cartas aconteceu.
Veio tudo à tona, as lembranças do momento em que recebi caixa de sapatos com minha mãe apresentando seu novo namorado, justamente o que meu pai dizia em uma das cartas endereçadas para este momento.
Minha mãe teve muitos namorados, coisa que nunca entendi. Preferi acreditar que o motivo disso era o fato do meu pai ser o verdadeiro amor da vida dela. Eu percebia que este namorado era patético pois ele nitidamente não valorizava minha mãe.
Parecia uma relação de um cachorrinho implorando a atenção do seu dono, neste caso, a minha mãe seria o cachorrinho. Ela com certeza merecia coisa melhor que um boêmio que conheceu no forró.
Me lembro da dor e ardência do tapa que levei após completar a palavra forró. Enquanto meu rosto queimava, de repente, lembrei da caixa do envelope que dizia PARA QUANDO VOCÊ TIVER A PIOR BRIGA DO MUNDO COM A SUA MÃE.
Na bagunça que fazia para encontrar a caixa, levei outro tapa da senhora minha mãe. Até que enfim, encontrei em uma mala de viagem empoeirada.
Quando abri a caixa, dei de cara com o envelope PARA QUANDO VOCÊ DER O PRIMEIRO BEIJO e me lembrei de que tinha pulado esta fase sem ler a carta.
Senti por um segundo a revolta de mim mesmo de não ter lido a carta. Decidi ler esta depois e continuei a busca pela carta procurada. Também encontrei outra não lida, PARA QUANDO VOCÊ PERDER A VIRGINDADE.
Até que enfim, achei a carta, dizia:
Peça perdão.
‘‘Não posso imaginar o motivo que causou tal discussão. Mas conheço muito bem a sua mãe. Por isso te aconselho que a melhor forma de trazer a paz e entendimento nesta situação é com humildade pedir desculpas.
Não se esqueça, ela é sua mãe. Nunca vai querer o seu mal. E até escolheu ter você com parto normal pensando que assim seria melhor para você. Mostrando te amar acima de tudo. Vai, pede perdão, ela vai aceitar na hora. Eu seria mais duro, você sabe.
Com amor, seu pai.’’
Meu pai trabalhava no banco, não tinha muito jeito com palavras mas tenho que admitir: aquelas palavras mexeram comigo. Ali tinha mais conhecido que nos meus meros quatorze anos de vida!
Fui correndo, já chorando, para o quarto da minha mãe. Quando abri a porta, ela também estava em lágrimas. Ela gritou, não me lembro o quê mas nem levei em conta, simplesmente a abracei e ficamos quietinhos por alguns minutos, abraçados.
Eu mostrei esta carta à ela que a fez rir muito! A paz voltou, oportunidade para mamãe me contar de algumas manias estranhas que meu pai tinha: como comer geléia de morango com salame.
Depois, fui correndo ler o envelope PARA QUANDO VOCÊ PERDER A VIRGINDADE. Ali dizia:
Vamos soltar fogos, filho!
Não fique nervoso, conforme o tempo passar, sua experiência vai melhorar tudo. A primeira vez é um desastre mesmo. Eu peguei uma piriguete horrível em minha primeira vez se isso te consolar.
Tive muito receio de você ter coragem e perguntar para sua mãe, antes desta carta, o que era virgindade ou para piorar, abrir este envelope sem saber o que significa uma punheta mas isso vai ser problema somente seu, ok?!
Beijão, seu paizão.
Nestas cartas, meu pai esteve comigo em toda a minha vida. Seus envelopes me deram força, alegria nas horas tristes e me fizeram abrir a mente em muitos momentos.
Ah… o envelope PARA QUANDO VOCÊ CASAR me deixou emocionado mas a emoção das emoções mesmo foi quando abri a PARA QUANDO VOCÊ FOR AVÔ:
Amado filho,
Chegou o momento de você conhecer o verdadeiro amor. Nele você vai descobrir que gosta muito da sua esposa e que amor mesmo, vai sentir com essa menininha ou menininho que virá ao mundo.
Aproveite ao máximo cada segundo, passa muito rápido! Dê o banho, troque as fraldas, sirva a comidinha. Você vai ser um avô incrível, tenho certeza que vai se espelhar em meu exemplo.
Posso sentir que uma das cartas mais sofríveis para meu pai escrever e para eu ler, num dos momentos mais tristes da minha vida foi PARA QUANDO SUA MÃE SE FOR. O dia inevitável de ler, infelizmente chegou:
Te apresento, minha sogra.
Apenas quatro palavras escritas que não me fez sorrir mas entendi o significado. Aqui meu pai revelou seu triste sentimento escondido em uma máscara sorridente.
Fui fiel em não abrir as cartas que meu pai escreveu antes do tempo determinado a não ser só uma, a PARA QUANDO VOCÊ DESCOBRIR QUE É GAY.
Eu nunca imaginaria que abriria esta carta anos depois, por isso, ri alto quando abri o texto escrito nela. Uma parte do que ele escreveu:
Eu direi “ainda bem que a morte chegou para mim”. Bom, mas falando sério, o que para mim é difícil, é estando agora, quase morto, que vejo como damos importâncias para coisas insignificantes.
Não seja bobão e sim feliz.
Sempre tive por toda a minha vida uma expectativa pelo próximo capítulo da vida. A carta que virá com a próxima lição do meu pai. É simplesmente incrível e maravilhoso o que um homem de 27 anos conseguiu ensinar para um velho senhor de 85 anos, no caso, eu.
Estou no hospital, deitado em uma cama, com tubos em meu nariz e também na traqueia pois o câncer também me pegou. Sempre tive medo de ler esta carta com as letras desbotadas chamada PARA QUANDO SUA HORA CHEGAR.
Quanto medo em abrí-la não consigo imaginar que minha hora chegou. Mas mesmo assim abri com esperança. Estava escrito:
Filhão,
Você já deve ter chegado na fase da velhice agora.
Acredite. Esta foi a primeira carta que te escrevi e também a mais fácil. Esta carta é responsável por fazer sumir a dor de perder você. A proximidade do fim faz com que os pensamentos se tornam mais claros.
Nestes dias cruciais, pensei a maneira como levei a vida. Foi muito curta mas com certeza, feliz. Fui marido da sua mãe tive o privilégio de ser seu pai. Eu não poderia ter dádivas maiores que estas. Por isso, um último conselho, faça o mesmo e não precisa ter medo.
PS: Tenho saudades.